domingo, 24 de janeiro de 2010

O Gabinete Literário de Itabaiana (1875-1880)








Tributo ao professor Damásio Leite e ao Gabinete Literário de Itabaiana (1875-1880) [1]

Wanderlei Menezes[2]


Em 1860 era fundado em Aracaju o primeiro gabinete literário da província de Sergipe. Dezessete anos depois, em Maruim, surgia o mais propalado, influente e duradouro gabinete de leitura de Sergipe. No ínterim desses dois acontecimentos históricos para a cultura de Sergipe, na vila de Itabaiana surgia também um gabinete literário. Este texto trata da trajetória de vida do fundador desta iniciativa cultural que apesar de efêmera representou um importante momento para a história da educação e cultura de Itabaiana no século XIX.
Nos idos da década de 50 do século XIX, nascia Manoel Damásio Pereira Leite, na então vila de Santo Antônio e Almas de Itabaiana, filho legítimo do casal Damásio José Pereira e Josefa Francisca de Araújo Leite. Recebeu o sacramento do batismo do vigário Domingos de Melo Resende na Igreja Matriz de Santo Antônio e Almas de Itabaiana. A família Pereira Leite era tradicionalmente constituída de educadores e sacerdotes. Tinha o pequerrucho por irmãos os professores Olímpio Pereira de Araújo (1854-1875), Manoel Pereira de Araújo Leite, Cassiano Pereira de Araújo, Guilhermina Leite de Araújo, Laurinda Leite de Araújo – todos dotados de muita inteligência e preparo.
Jovem irrequieto, muito moço deixou as saias da mãe e entrou para o seminário. Não chegou a se ordenar padre por motivos desconhecidos. No início da década de 70 voltou à terra natal decidido a ser professor. Sua missão de vida era levar aos compatrícios as luzes do saber. Damásio falava fluentemente o francês. Apesar de muito religioso, a História era sua grande paixão.
Em 1874, planeja fundar na sede da vila um gabinete literário, ideia ousada e um tanto quanto progressista para uma terra tão descuidada com a cultura. Só para se ter noção do descaso do poder público com a educação, nesse mesmo ano a Assembleia Provincial expediu a Resolução 962 que determinava a extinção da cadeira de ensino elementar de Itabaiana que fosse menos freqüentada. Assim, com modesta festividade e sem a presença das elites políticas e econômicas, em 28 de fevereiro de 1875, foi inaugurado o Gabinete Literário de Itabaiana, um dos primeiros da Província de Sergipe. A sede da iluminista instituição situava-se na outrora Rua das Flores, atual Barão do Rio Branco.
A empolgação e idealismo do jovem Damásio conseguiu congregar mais 24 pessoas no seu projeto de vida. Eram os membros fundadores do gabinete: Professor Manoel Damásio Pereira Leite (185? -1881), Alferes Joaquim José de Oliveira Mesquita (1846-1879), Tenente Manuel Álvares Teixeira (?-1906), Antonio de Oliveira Bezerra (1849-1922), Tenente Antonio dos Santos Leite (1835-1907), Capitão Manuel Joaquim de Carvalho Lima, Tenente José Teles de Góis, Professor Olímpio Pereira de Araújo (1854-1875), Alferes Antonio Joaquim de Oliveira Noronha (1840-1901), Guilhermino Amâncio Bezerra (1847-1909), José Amâncio Bezerra, José Martins Fontes (1829-1895), Tenente Marcelino de Melo Cardoso, Esperidião Zamiro de Sousa Lopes, Tenente José da Costa Fontes (1848-1880), Capitão Francisco Julião de Lemos, Dr. Francisco Dias César (1840-1875), Tenente-coronel Antonio Carneiro de Menezes (1813-18?), Samuel Pereira de Almeida (1853-1892), Antonio Cornélio da Fonseca (1845-1922), Tenente José Caetano de Távora, Alferes José Verano de Carvalho Lima (1841-1915), Francisco Farias de Barreto Freire, Antonio Pinheiro de Melo e Salustiano de Carvalho Lima.
Os gabinetes literários eram instituições que visavam fomentar o gosto pela leitura. O atraso cultural de Itabaiana era tão grande que o Gabinete era mais uma escola. Primeiro, pensavam os fundadores do gabinete, devia-se instruir a mocidade para depois se pensar em fomentar o gosto pela cultura. Segundo o pesquisador Sebrão, sobrinho, o gabinete de Itabaiana tinha por objetivo facilitar aos seus membros a instrução pela leitura dos bons livros e jornais, especialmente os nacionais. Porém, a principal função era oferecer o ensino básico à juventude itabaianense.
Nessa época Itabaiana vivia o apogeu da cultura algodoeira. A “febre do algodão” contaminava toda a vila. Os itabaianenses ficaram ricos do dia para a noite, porém continuava a vila a ser “um cantão de bárbaros e ignorantes”. A instrução pública era privilégio de pouquíssimos e, principalmente, dos bem-nascidos. O gabinete era a mais democrática instituição de ensino surgida em Itabaiana. Jovens pobres tinham o mesmo direito de receber os rudimentos do saber que os mais abastados. Os melhores e mais talentosos professores de Itabaiana estavam no Gabinete, motivo que enciumou muita gente, principalmente a retrógrada classe dirigente e os professores particulares. Para indignação dos opositores e “agourentos”, grande foi a procura pela iniciante instituição: mais de 70 alunos matriculados nas sete aulas que o gabinete oferecia, número espantoso para a época.
No primeiro ano de atividade havia quatro professores, a saber: Olimpio Pereira de Araújo, Guilhermino Bezerra, Damásio Leite e Antonio Joaquim de Oliveira Noronha. As disciplinas ofertadas eram: Primeiras letras (professor Olímpio); Matemática elementar, Língua, Literatura nacional e Catecismo (Guilhermino Bezerra); História do Brasil, Geografia Moderna e Língua francesa (Damásio Leite) e Música (maestro Antonio Joaquim de Oliveira Noronha).
Os dois primeiros anos foram de sucesso e grande entusiasmo. Só uma grande baixa: a morte do professor Olimpio Pereira de Araujo, em junho de 1875. Mas o gabinete seguia seu caminho satisfatoriamente, mesmo sem a ajuda do poder público.
José Martins Fontes, juiz de direito e posteriormente presidente de província, foi eleito presidente da instituição. Acreditavam os associados que sua influência pessoal poderia ajudar a instituição. Contudo, estavam errados os sócios. O presidente mostrou-se omisso com o gabinete. Em 1877 tornou-se sócio-fundador do Gabinete Literário de Maruim, o único do gênero ainda existente em Sergipe, e esqueceu-se da agremiação que lhe outorgou o cargo máximo. Quando assumiu as rédeas da província de Sergipe (1877-1878) não fez nada pelo Gabinete de Itabaiana. Resolveu o ingrato presidente prejudicar a benemérita instituição cultural. Tirou, por ato oficial de 02 de março de 1877, Damásio Leite de Itabaiana. O jovem professor havia sido nomeado para a escola de Nossa Senhora Dores. Teve que deixar o gabinete e seguir seu destino de coração partido. Mas foi... Sempre que podia Damásio vinha a sua terra natal e o primeiro local que visitava era o gabinete.
Os infortúnios só estavam começando para Damásio. Passado o mandato do ingrato José Martins Fontes, era a vez do bacharel Teófilo Fernandes dos Santos ascender ao posto de presidente de província e dar sua contribuição pessoal para o arruinamento do Gabinete. Por razões políticas perseguiu ferrenha e impiedosamente ao nosso idealista. Por ato de 19 de março de 1879 o deixou mais longe do Gabinete ao transferi-lo para a vila de Itabaianinha, no extremo sul da província, cinicamente com o argumento de “conveniência do serviço público”. Suspeito que tal ato discricionário teve o “dedo” dos políticos do partido conservador de Itabaiana. Damásio se uniu a jovens dissidentes do partido conservador, os irmãos Bezerra, e era um liberal moderado. No novo lugar de trabalho o jovem professor sofreu na pele os ranços da politicagem mesquinha. Os jornais da época noticiaram o drama do desafortunado Damásio. É de comover até os mais insensíveis os ultrajes sofridos.
Ao voltar a Itabaiana, no crepúsculo do ano de 1879, durante as férias, adoeceu ao ver o gabinete quase fechado. Os sócios mais ativos saíram de Itabaiana para ocupar cargos públicos (a exemplo de Antonio Cornélio da Fonseca, Guilhermino Bezerra e outros) e os mais displicentes fizeram vistas grossas ao arruinamento da instituição cultural. Por tudo isso, O Gabinete Literário de Itabaiana estava com seus dias contados.  
A elite política retrógrada queria Damásio mais longe ainda de Itabaiana. A Resolução Provincial número 1156, de 30 de abril de 1880, do deputado provincial Germiniano Rodrigues Dantas, estipulava uma licença para encerrar seus “estudos em qualquer seminário do Império” durante três anos. Damásio não gozaria da “bondade” da Assembleia Provincial.
A 10 de janeiro de 1881 dava seu último suspiro o professor Damásio Leite, desgostoso, pobre e doente de beribéri. Morreu em Itabaiana, buscando a cura da sua enfermidade com a mística da Serra de Itabaiana e a alegria de ver o letreiro do Gabinete que anos atrás ele havia fundado. Viu o desditoso professor, dias antes de falecer as portas do seu Gabinete Literário fechadas. A sociedade itabaianense, omissa e descuidada com a cultura, calou-se frente à morte do Gabinete. A morte de Damásio representou a morte do Gabinete.
O historiador Carvalho Lima Júnior (1859-1929) saiu de Itabaiana no apogeu do gabinete e ao regressar anos depois a sua cidade natal viu morrer a mais bela iniciativa cultural da História de Itabaiana. Tal desgosto, entre outros motivos, o fez nunca mais pôr os pés no torrão serrano.  
O enterro do fundador do Gabinete ocorreu no cemitério das almas. O mesmo Domingos de Melo Resende que o batizou, celebrou as exéquias. Este sacerdote era delegado literário, vigário da freguesia e influente político, ou seja, um dos homens que poderia ter dado seu contributo ao Gabinete e, no entanto, foi omisso e conivente com os críticos da instituição.
A família Bezerra, entusiastas e sócio-fundadores do Gabinete, tornou-se forte politicamente nos últimos anos da década de 80, mas isso não foi o suficiente para ser reativado o sonho de Damásio. Em 28 de agosto de 1888, Itabaiana foi elevada à condição de vila. Nessa época ainda restava a fachada do Gabinete com os dizeres: Gabinete Litterario de Itabaiana. O século XX veio impiedoso e matou um a um os sócios-fundadores da instituição que em 1875 levou cultura ao povo de Itabaiana. Até a década de 40 do século passado existia a última marca dos tempos de glória do Gabinete: o apagado letreiro. Acredito que a geração iletrada do início do século XX se perguntava o que havia sido aquela instituição.
Em 1936 é criado o primeiro grupo escolar de Itabaiana. A honra de denominar a instituição de ensino é de Guilhermino Bezerra, um dos sócios-professores do Gabinete. Passados treze anos, a Lei número 190, de 30/06/1959, cria a Biblioteca Pública Municipal de Itabaiana. Muito merecia Damásio emprestar o nome para a biblioteca, mas o escolhido foi o farmacêutico e rábula Dr. Florival de Oliveira (1889-1965).
As escolas municipais de Itabaiana, há décadas atrás, receberam nomes curiosos e até hilários, por exemplo, Escola Panamá (povoado Malhada Velha), Egito (povoado Igreja Velha), Costa do Marfim (povoado Zanguê), Grécia (povoado Estreito), Jamaica (povoado Flexas) e até Líbia (povoado Congo)!!! Mas a Damásio nenhuma singela homenagem... Faz-se necessário mencionar que na década de 90 do século passado a escola do povoado Queimadas, atualmente bairro, tinha o nome de Olímpio Pereira de Araújo, irmão de Damásio e sócio-professor do Gabinete.
Damásio Leite é um nome desconhecido na História de Itabaiana. Apenas o velho pesquisador Sebrão, sobrinho (1898-1973) recolheu algumas breves informações sobre sua vida numa nota de rodapé do livro Tobias Barreto, o Desconhecido (1941). Bem que poderia o velho Sebrão, por tudo que vimos, ter dito que a atuação de Damásio Leite foi mais importante para Itabaiana que a breve passagem do tão homenageado Tobias Barreto.
O professor Damásio é um personagem histórico injustiçado tanto em vida quanto em morte. Logo ele, um moço talentoso de um coração magnânimo, bondoso desde muito jovem, sempre pronto para ser útil a seus amigos, um exemplo vivo de desprendimento e solidariedade humana. É triste pensar que um homem dessa qualidade vive num esquecimento sepulcral e até hoje não recebeu o devido valor dos seus conterrâneos. Mas ainda podemos corrigir essa injustiça histórica da cidade serrana de Sergipe.
            Dos gabinetes de leitura do século XIX e início do século XX só existe em Sergipe o de Maruim, em precário estado. Em discurso pronunciado nas comemorações do cinquentenário do Gabinete de Leitura de Maruim (21 de agosto de 1927), Joel Aguiar, intelectual maruinense, profetizou com extrema precisão o futuro da outrora desenvolvida urbe da Cotinguiba e o valor do Gabinete:

se a fatalidade lançar algum dia sobre nós as malhas do regresso, obrigando-nos a palmilhar e a perlustrar a tenebrosa estrada da decadência, esta cidade não morrerá de todo, porque será sempre lembrada como terra propagadora das lettras (...) se o destino nos levar à triste situação de um lugarejo, onde não se houve o ruído do progresso e a harmonia da justiça, forçando-nos a olharmos entristecidos para as quietas águas do Ganhamoroba, esta cidade não morrerá de todo, porque um pharol brilhará sempre à vista de quem aqui pizar, encadeando de alegria a retina do viajor.

Imaginem, caros leitores, se a profecia do orador de Maruim um dia servir para Itabaiana. Quando as luzes do progresso cessarem, o que será de Itabaiana? Certamente pior que Maruim.


[1] O presente artigo foi produzido entre 18 de agosto e 10 de outubro de 2009 e faz parte de uma coletânea inédita de textos escritos de junho de 2005 a setembro de 2009 sobre a História de Itabaiana. A pretensão é compor um livro intitulado “A outra história de Itabaiana”.
[2] Graduado e Bacharelando em História pela UFS. Sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Diretor do Departamento de Pesquisa e Memória da Secretaria Municipal de Cultura de Itabaiana. Contato: wanderlei.menezes@yahoo.com.br.