domingo, 24 de janeiro de 2010

A Eleição do Cacete da Vila de Itabaiana (1848)





Wanderlei Menezes[i]
Dois grandes partidos (...) combinados com o único fim de assaltarem o poder. [ii]
           
            Os partidos Liberal e Conservador monopolizaram as disputas políticas no Brasil monárquico. Nascidos na época regencial, as duas facções travaram memoráveis e violentas disputas pelo poder. Em decorrência disso, vulgarizou-se o rótulo “eleições do cacete” para denominar os pleitos eleitorais dessa época. O uso da força nas eleições era mais acentuado em localidades interioranas, onde os chefes políticos usavam métodos “sujos” para garantirem o controle sobre o eleitorado. Coube a Itabaiana o triste título de local das mais memoráveis eleições do cacete da História de Sergipe.
            As disputas eleitorais se processavam de forma bastante tumultuada. Situação e oposição procuravam manter seus cargos através de métodos que iam da troca de favores à intimidação de eleitores através de ameaças e agressões. As fraudes eram constantes. A situação quase sempre vencia as disputas. Todavia, quando a alijada oposição tomava o poder usava dos mesmos métodos dos adversários para se perpetuarem no comando da política local. As eleições eram muito mais que um pleito; significavam o futuro do chefe político e de seus agregados. Nenhuma das duas agremiações políticas queria ver o adversário ocupar os espaços públicos.  
            O sistema eleitoral contribuía para essa situação: só tinha direito ao voto os cidadãos com renda estipulada por lei, a votação era aberta, geralmente na Igreja Matriz, e não havia o que hoje chamamos de Justiça Eleitoral. Sendo assim, o eleitor sofria a pressão da ação dos “donos do poder” na hora de depositar na urna seu voto. O resultado era sempre duvidoso, pois, antes da eleição, as autoridades intervinham na qualificação de votantes e, depois do final dos trabalhos da mesa paroquial, poderia haver o criminoso esquema das duplicatas de atas eleitorais para beneficiar determinados candidatos.
                Sergipe sofreu durante o Império memoráveis situações de conflitos armados entre liberais e conservadores pelo controle do eleitorado. O maior exemplo desses embates foi a dita Revolução de Santo Amaro (1836). Todavia, toda eleição na vila de Itabaiana era marcada pela truculência e por cenas lamentáveis. O exemplo maior dos embates sangrentos de liberais e conservadores ocorreu em 1848 e causou grande repercussão em toda a província de Sergipe.
                Corria o ano de 1848 sem grandes novidades na vila de Itabaiana. Em janeiro, era enforcado em praça pública, após sofrer condenação à pena capital, o mascate João Gomes. Dizem que o pobre homem pagou por um crime que não cometera [iii]. Nesse ano, os liberais representavam a situação na vila. Após amargarem longos anos de ostracismos e perseguições – principalmente por parte do Tenente Manoel da Cunha Mesquita, nome de triste memória pelos crimes de abuso de poder e corrupção passiva e ativa –, nos últimos anos da década de quarenta os liberais tomaram o poder e cometerem toda espécie de desmandos. A ala situacionista era liderada por José Antonio de Carvalho Lima, presidente da Câmara dos Vereadores de Itabaiana, e pelo Tenente-Coronel da Guarda Nacional Antonio Carneiro de Menezes. A oposição aos liberais era formada por Manoel da Cunha Mesquita, Tertuliano Manoel de Mesquita e Manoel Raimundo Teles de Menezes.[iv]
            No já referido ano, os conservadores começaram a retomar espaço graças à ascensão de seu partido em nível nacional. Um dos Juízes Municipais, José Ramos de Souza, era partidário dos conservadores. No entanto, o delegado e o subdelegado eram liberais. Essa clara divisão dos “homens da lei” era o prelúdio de conflitos. As animosidades e excessos começaram a surgir. Os liberais Eugênio José Teles e José Francisco de Menezes foram demitidos de seus cargos pela ação de políticos conservadores. Para piorar a situação, as eleições locais para a escolha de vereadores e juízes de paz estavam marcadas para 10 de outubro.[v]
                Poucos dias antes do pleito, o Juiz Municipal suplente José da Souza Ramos ordenou a prisão de Antonio Carneiro de Menezes e de outros liberais sob a alegação de não poderem fazer parte da mesa paroquial e de suposto plano de distribuição de armas e munições a seus protegidos a fim de garantirem “a ferro e fogo” a vitória no pleito. Este último boato agitou os ânimos dos conservadores. Ao alvorecer do tão esperado dia 10, uma terça-feira, a Matriz estava cercada por mais de trinta homens armados de cacetes, bacamartes, foices e outras armas mortíferas.[vi] O Pároco da Igreja, Félix Barreto de Vasconcelos, se assustou ao sentir o clima de guerra. As forças policiais, comandadas pelo delegado José Teixeira Lobo e auxiliadas pelo subdelegado José de Souza Contreiras, ambos liberais, foram chamadas para desalojar o grupo de baderneiros a mando do Juiz Municipal. O contingente policial, porém, regressa em busca de mais reforços por não terem número suficiente de soldados para executar a ação de dispersão dos perturbadores da ordem. Com a chegada de um maior contingente policial para se garantir o andamento das eleições e o sossego público, começa o bate-boca e ouvem-se gritos por parte do grupo desobediente de “viva o partido legal (conservador) e morte aos camundongos (liberais)”. Era o sinal, o estopim do conflito. A porta da Matriz se transformou, em poucos segundos, num verdadeiro campo de batalha e as autoridades e populares se dividem conforme suas preferências políticas. O interior da Matriz, o matagal da praça e cantos de parede da Paróquia de Santo Antonio e Almas serviram de trincheiras.[vii]
            Descargas de tiros estrondosas são ouvidas – uma verdadeira chuva de chumbo –, gritos de desespero e dor, fumaças de pólvora e muito barulho marcam os primeiros minutos do trágico embate. Mais de cinto e cinqüenta tiros disparados nas duas frontes. Pouco mais de dez minutos, o grupo de desordeiros, percebendo a desvantagem numérica, deu toque de retirada e o conflito foi estancado. Silenciado os trabucos, era hora de colher os negros frutos do intenso tiroteio: 3 mortos e 19 feridos. Um enorme estrago para um confronto tão rápido.
            De acordo com o historiador itabaianense Carvalho Lima Júnior[viii], quando a Matriz de Itabaiana recebeu reparos (1871), ainda se contavam os vestígios do grande tiroteio de mais de duas décadas atrás dentro e fora do recinto sagrado dedicado a Santo Antônio que durante o tiroteio deve ter corrido para debaixo do altar. Ficaram também as marcas de balas nas paredes de residências próximas à Matriz. No dia seguinte, os mortos eram enterrados com grande pesar. No óbito bem que poderia constar como causa mortis a intolerância política e autoritarismo crônico e doentio dos chefes políticos.
            O Dr. Cláudio Manuel de Castro, chefe de polícia, resumiu bem as causas do conflito: “não há crimes que não cometem, nem meios por mais baixos que sejam, de que não lancem mão quando se empenham em pôr os intentos em execução” [ix]. Já o padre Félix, que também era deputado, pronunciou um belo discurso na Assembléia em março do ano seguinte ao ocorrido onde mostrou o aspecto calamitoso da sua freguesia: “pois sendo morador em Itabaiana, e não vendo nela segurança alguma publica, e individual, somente vejo muita immoralidade, muita desordem, e nenhuma segurança. Em Itabaiana, Senhores (deputados), os roubos de toda espécie são contínuos, e quase cotidianos, os assassinatos sobem a hum numero espantoso (...) as estradas por ali andam infestadas de facinorosos”.[x]
             A vila ainda registraria outras batalhas eleitorais em 1856, 1863, 1868 e 1872, porém nenhuma dessas com a intensidade daquela lastimável manhã de terça. Para piorar ainda mais a situação, no mesmo ano do grande tiroteio, a vila recebeu a indesejável visita da febre amarela. A doença ceifou muitas vidas[xi]. Não faltaram aqueles (as) que explicavam as três desgraças (enforcamento de João Gomes, o tiroteio e a peste) como sendo castigo divino. Os episódios de 1848 mostram que os males das rivalidades e da polaridade política têm longa trajetória no torrão serrano.
            Por fim, cabe registrar o equívoco cometido pela historiografia sergipana ao fazer alusão aos acontecimentos relatados acima. Erram os historiadores locais (Comendador Travassos, Lima Júnior, Sebrão sobrinho, Vladimir Souza Carvalho, Maria Nele Santos, Maria Thétis Nunes e outros) ao considerarem que o “tiroteio de 1849” ou “morticínio de 1849” ocorreu durante as eleições de 1849. Na realidade, a briga política ocorreu, conforme mencionamos antes, durante a realização das eleições para vereadores e juízes de paz no ano de 1848, como atestam todos os documentos manuscritos de época e o jornal Correio Sergipense. A possível explicação para a perpetuação do equívoco histórico pode residir na reprodução, sem a devida crítica histórica, por parte da moderna historiografia sergipana, dos clássicos textos de Travassos[xii] e Lima Júnior[xiii] e o fato de ter ocorrido no ano de 1849 as eleições para deputados.
NOTAS

[i] Graduado em História pela Universidade Federal de Sergipe. Contato: wanderleidamarcela@hotmail.com;
[ii] O CONSERVADOR, Aracaju, 01 de janeiro de 1868, p.2;
[iii] MENEZES, Wanderlei de Oliveira. Festa, farinha e forca: a pena de morte na província de Sergipe (1839-1889). São Cristóvão, 2008. Monografia (Licenciatura em História) – Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe. p.73-76;
[iv] Em relação aos desmandos e crimes dos conservadores de Itabaiana vide APES. Coleções Particulares, Fundo Sebrão, sobrinho, Volumes 35 (docs. 01,06 e 10); 37 (doc. 7); 40 (docs. 09 e 11); 44 (docs.01,03,09,11); 46 (docs. 09,10);
[v] APES. Fundo Câmaras Municipais CM1 36 e CM1 37;
[vi] PESTANA, Domingos Mondim. Sucessos do dia 10 de outubro de 1848 em a Villa de Itabaiana. CORREIO SERGIPENSE. São Cristóvão, ano XI, n. 84, 08 de novembro de 1848, p.3-4;
[vii] CORREIO SERGIPENSE. Sessão ordinária de 08 de março de 1849. São Cristóvão, ano XII, n. 18, 17 de março de 1849 (suplemento). p.2-3;
[viii] LIMA JÚNIOR, F. A. de Carvalho. Monografia histórica do município de Itabaiana. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, v.2, n.4, 1914. p.144-145;
[ix] NUNES, Maria Thétis. Sergipe Provincial II (1840-1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p.126;
[x] CORREIO SERGIPENSE. Sessão ordinária de 08 de março de 1849. São Cristóvão, ano XII, n. 18, 17 de março de 1849 (suplemento). p.3;
[xi] CARVALHO, Vladimir Souza. Santas almas de Itabaiana grande. Itabaiana: Edições o Serrano, 1973. p.49-54;
[xii] TRAVASSOS, Antonio José da Silva. Apontamentos históricos e topográficos da Província de Sergipe. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Aracaju, v. 3, n.6, 1916. p.110;
[xiii] LIMA JÚNIOR, 1914, p.144-146.