domingo, 24 de janeiro de 2010

Oliveira Teles e a Lenda de origem da Serra de Itabaiana



Itabayana

I
Ita, collis; aba, vir,
humo; oane, nune.


Esta pequena patria de montanhas
E’ um pequeno berço effervescente
De vagueiantes lendas. Cada gruta,
Cada alcantil erguido sobre a serra,
Cada bocca de matta anoitecida,
Cada retiro e cada solidão,
E’ no estylo natural e conciso,
Do pintor invisivel bello quadro,
Excelsa tela de magias raras,
*
* *
De perto, observei suas grandezas.
De dia, em pleno sol que a luz refrange,
E’ grato projectar a luz dos olhos
Pela extensão dos grandes descampados.
Quanta surpreza então! A natureza

Toma a feição de garrula cigana;
Não veste andrajos, mas ostenta galas;
Não traduz o futuro, antes o esconde,
E obriga o pensamento a perseguil-o,
Sem rumo o norte, fatigado a busca
Do recavado golfo dos meus mimos.
*
* *
Do pôr-do-sol em deante tudo esplende
No próprio véo das sombras desdobrado
Manso gotteja o rocio nocturno
Do enxovalhado manto da amplidão.
Myriadas de estrellas scintillando
Da via - láctea o assento desmaiado
Accendem com fulgor, que se compara
A um lagarto de fogo faiscante.
Errantes virações de quando em quando
Passam, perpassam. Cada mouta escura,
Aos olhos de um grego apaixonado
Abrigaria a dryade travessa.
A saltar pelos ramos consagrados.

A hora vem do mais festivo baile
Dos sêres encantados das florestas;
Pois anoitece: - a hora dos mysterios
E das saudades fundas, penetrantes.
Quem amores não sente, quando a noite
Se inclina de lá da immensidade!
Quantos hymnos de amor ella me inspira!
Quanto puro ideal commigo assiste!
Noite, noite de amor, és doce enlevo,
Mensageira fiel da solidão!
*
* *
Tu, Musa do Brasil, não me abandones
Mergulha meu pincel nas cores vivas
Do bello e do sublime. O pensamento
Que educo, de gravar em pobres versos
Õ nome desta patria que idolatro,
Corra espontâneo, livre, alevantado.
Monumento de luxo e de opulência
Não me concede o ingenho solitario.
Corram pareo com a voz do entendimento
As effusões desta alma generosa;
Que sergipano eu sou: amo Sergipe.
Com ella gemo e soffro a desventura
Que lhe pesa na sorte aventureira.
*
* *
Farta de seiva, a poesia errante
Pode aqui germinar novos productos,
Capazes de cortar o curso às causas,
Que passam no silêncio extravagante.
De um viver de esponja indifferente
Muito de adoro, ó ninho perfumado!
Patria dos coqueirais de palmas langues,
Das bromélias gentis e das begonias,
Da baunilha, dos cedros seculares,
Neste meu peito a extravasar tristezas
O mais caro recanto inteira accupas.
E’ o mais querido albergue de minha alma;
Estância derradeira onde a alegria
Costuma às vezes sacudir as azas
De aurorais effluvios iriadas;
Mas como o puro amor ahi habita,
Ahi, ó pátria, assignalei teu nome.
*
* *
Aurea estrella gentil que se condensa
Em fogacho de bellas esperanças;
Tu que me prendes a um porvir fulgente;
Renovando nos teus meus pobres dias;
Visão que me seduz, porem tangível.
Minha estrela polar, meu torrão de ouro
Minha riqueza, meu cuidado e enlevo;
A terra onde nasci que não me é dado
Dos rapaces salvar, que a degradaram.
E’ o único legado que te deixo.
Em Sergipe nasceste, Garcilazo
Compromisso solemne contrahindo,
Força e talento empenharás por ella.
Como Hamnibal, aos pés dos meus altares,
Nunca vingança, meu amor e affecto
Por teu Sergipe jurarás contente.

II

Na vasta região embalsamada
Por candeiaes de aromas exquisitos;
Que vae em parallelo a toda a costa;
Onde vinga o cotão de flores laureas,
E’ que fica o planalto sorridente
De Itabaiana. Vem da serra o nome.
*
* *
Que bella região! Paiz de fadas!
De tudo quanto è murmur no unixerso
_ Desde a voz da insecto á voz das auroras_
Alli existe um exemplar sublime.
E da orchesta que ensaia o bando alado
Nenhuma nota voa que não fira
No coração delícias inffaveis.
Aos olhos surgem maravilhas
Quaes cambiantes vistas subtaneas,
Phosphorecentes. As neblinas mansas
Os dias de verão e as invernadas,

Tudo é grande motivo sublimado
Pra emover a alma do poeta.
Outras vezes da serra sobre a grimpa
Bem perto, extranha laz irradiando,
Aos insultos do sol em pleno dia,
Ou do frouxo luar á luz pallente,
Vem tremulando clara projectar-se
Pelos telhados da cidade antiga.
*
* *
A lenda popular, que não discute,
Imaginou a historia inverosimil
De um novilho lá encantado na serra.
Por ventura reflecte inconciente
Os labores ruraes dos habitantes,
Que vivem a lavrar as férteis terras,
Que circumda a galharda serrania.
A rica musa popular fecunda,
Que distribui canções e forma lendas
Ãs mil dilatações da alma do povo,
_Ou sejam tranzes de agonia extrema,

Ou sejam rosas do viver tranquillo,
Ou sejam madrigais ou ironias_,
Em cada estrophe reproduz artista.
Magico espelho, reproduz a imagem
Do operario senil, - o povo rude.
*
* *

Ditosa Itabayana! Em teu regaço
Fulgem faúlhas da passagem brusca
De Tobias Barretto de Menezes!
Foi em ti que rugiu o leão rude.
Rugiu... Cada um era um poema,
Condensação de rutilas estrellas,
Que o patrio genio traduzia em verso.
Salve, terra gentil dos candeaes!
Que outras victorias não contando, excepto
Õ annel das lendas que te cinge a sorte,
Basta a augusta lembrança enaltecida
De alimentares em teu seio agreste
Todos os rasgos do gigante enorme,
Em tudo grande, desgraçado em dita,
Do generoso, infeliz Tobias.
*
* *
Vamos, meu estro. Com a lyra em punho
Ferindo notas expressivas, bellas,
Nesta lingua que fallo, que menino
Bebi há haustos do materno leite,
Celebrarei um drama original.
Deriva das origens afastadas;
E’ como ellas, ideial, ethereo.

III

Era um índio... Nem sei que nome tinha.
Não cogita do nome a poetiza,
A trovadora errante, que reside
Onde quer que a razão indifferente
Desattende ao labor do sentimento,
Era um indio, dizia, um potentado,
Terror das selvas todas, pois mandava
Sol e chuva naquelle tempo.
*
* *
Outro indio, não longe, dominava;
Também soberbo e mau, mas alquebrado,
Já farto de viver, no fim da edade;
Não velho a caducar, porem já velho,
De longa experíencia torturado.
Mais feliz que o rival, tinha uma filha;
Mais infeliz do que elle mais cuidados.
A indiana, na flor da mocidade,
De sazonados seios requeimados.
Fazia entontecer cada guerreiro.
*
* *
O caboclo rival do velho chefe
Era índio potente, musculoso.
Fanfarronava luctas e batalhas;
Na vil cabeça a intenção ardia
De exterminar o indio legendario.
Era Miaba a um tempo premio e causa
Para dar fogo ao odio inveterado;
Pois a bella Miaba era insensivel
Aos protestos do indio apaixonado.
*
* *
Era uma vez em um soito sombreado
Elle a vio e fitou contemplativo.
Era tão bella! Tão morena e linda!
Ella ria com o rir das trepadeiras,
Com os olhos no céo, em doce enlevo.
Formosa era a deveza. Dir-se-hia
Pequena ilha perfumada e fresca
Onde se erguia ao ceo ativo e nobre,
Como vivo attestado das edades,
Gigante vegetal, cedendo ao enleio
De uma latada a lhe enfeitar a fronde,
De maracujá, roxeadas flores.
Pequena ilha perfumada e fresca
Onde se erguia ao céo altivo e nobre,
Como vivo attestado das edades,
Gigante vegetal, cedendo ao enleio
Deu uma latada a lhe enfeitar a fronde,
De maracujá, roxeadas flores.
Uma brisa macia leve afflando
As moutas sacudia. Doce chuva
De petalas agrestes derramava
Sobre a moça indiana, que scismava.
*
* *
Elle a vio e tremeu. Era essa a hora
Em que a lua não tem o clarão frouxo
Que, anoitecendo, espalha pelo mundo.
Era prata tal qual. Já na aurora
As barras da manhã tingiam nuvens
De côr de rosa, annunciando o dia.
A harmonia das aves começava
E o brando ciciar das auroras mansas.

*
* *
E de outra vez á beira de um arroio
Em scismas se embebia a americana.
Era ao cahir da noite: hora de enlevo,
Mas tambem de tristeza cruciante,
Que mais se gosa quanto mais se chora.
E bem sabeis que vagos, dulçurosos
Pensamentos de dor no ermo assomam,
Quando a sós taciturnos meditamos.
A queda duma folha gera assombro.
Vae na queda da folha uma esper’ança murcha.
O inquieto olhar vagueia errante
Na funda solidão, onde esgueirados
Passam figuras vãs, sinistros vultos.

V

Figurae-vos, leitor, num desses dias
De tardes orvalhadas de saudades
A’ beira dum regato, ao pé da serra.
Com o sol, que expira, se evapora o riso;
Sobem com a noite as illusões do medo;
Da selva inteira lá negreja o seio.
Vereis tudo fugir a pouco e pouco.
Amores, ideiaes, risos, encantos,
Vereis do abysmo na garganta escura
Sumir-se: que não vale amor nem crença,
Quando o espectro do medo o peito esfria.
*
* *
No palpitante coração da virgem
E’ possível que a dor também penetre?
A vida da donzella é um preludio,
E’ raio festival de sol nascente.
Sonhos, risos, amores, _ eis a virgem.
Onde ha riso de moça, ha mar de anhelos.
Mas ai flores! Visões! Ai vãs chimeras!
E’ o dia o riso e a dor é a noite:
Eis pois da vida a dura alternativa.
Uma vida sem lagrymas ardentes
E’ como uma donzella sem amores.
*
* *
Por isso é bom viver emquanto a morte,
Esta visinha má, que anda em viagem
Pela existencia afora de qualquer parte,
Não da nenhum signal de que é chegada.
Amemos. O amor não é só contacto
De carne contra carne ou beijo impuro;
Porem norma do bem, como ideal.
A morte, quando vem, não manda avisos;
Não tarda no caminho: é prompta e breve.
Mas no drama da vida as scenas passam
Com rapidez fatal, que assim resolve
Os difficeis problemas da agonia.

V

Scismava a pobre virgem sertaneja,
Immergindo no fundo do ignoto
O vacillante pensamento incerto.
Como enorme morcego, pelos montes
Vae agitando a noite azas de sombras,
Triunphantes da luz que vae morrendo.
Aproveitando o estridular dos grillos,
Typo de homem vem, quebrando ramas,
E’ de um só pulo se apresenta á virgem.
*
* *

Quiz a moça fugir, era já tarde.
Só lhe restáva resistir á fúria
Do cacique que ardia pelo goso.
Não de outra sorte a alimentaria bruta,
Abrazada no fogo da lascivia,
Rosna, babando, sexual deleite.
A’ femea accorre, lambe-a; retrocede.
E avança de novo tiritante,
Na feroz expansão desenfreiada
Do instincto genesico indomado
A forma o animal quasi transmuda.
O pello vestical é como selva
De espiheiral desnudo da folhagem.
Continua a avançar ardendo em cio
Que lhe referve no esquentado sangue.
Mas é certa a repulsa. O amor desanda
Longe da fera em lucta pelo goso.
A natureza indifferente, crua,
Relucta em não unir, talvez cedendo
Do genio da especie ás exigencias.
Era assim o cacique. Em torvo offego
As ventas dilatando, porecia,
Certo da posse da mulher amada,
Com rancor desprezar os céos e a terra.
Miaba era indomavel no desprezo,
Fria de mais para um guerreiro altivo.
Quando encarou naquella solidão
Ao pé de si um homem repellente,
Cheio da mesquinha gana esqualida
Do impecto carnal apaixonado,
Teve medo, tremeu; tremeu convulsa;
Da propria fraqueza armando a força
Para bem longe o reppellio irada.

*
* *

Houve um instante mudo, mas terrível.
Mas o selvagem não reflecte muito.
Demais era senhor do ermo e della,
Nessa hora feliz, cevando raivas,
Prazer e odio saciava á farta.
Oh! A negaça accelerou-lhe o fogo.
Como treme o assassino, se nas faces
Embotadas do crime, castigadas
Pelas lívidas cores do remorso,
Horrenda bofetada accende a raiva
E mais um crime arranca do recanto
Do petreo coração, elle tremia.
Do incendio feroz, agigantado
Na alma lhe bate a labareda em cheio;
Bem como á face lisa dum espelho
A luz do sol resvala de repente.
*
* *

Enfim, muito mais poude a ebriedade.
Foi-se o cacique em tedios devorados,
Tedios do goso, que succedem logo.
Chora Miaba a ingratidão da sorte.
O riacho a rolar sobre pedrinhas
Imitava os soluços de Miaba.
Mas nem toda desgraça vem isempta
De consolação. Nas águas presto
Bello jurão ergeu-se confortavel,
Na taba de seu pae não mais foi vista.
*
* *
Então dizem que déra á luz, ao cabo
De nove meses de crueis tormentos,
Uma formosa explendida menina,
Que trouxe a sorte de viver nas fontes,
Nas águas claras, nos ribeiros limpos.
Ainda hoje à volta onde gênios
O rude palaffita construiram,
E’ appellidada Poço da Mãe da Agua.

VI
Mas do cacique a sorte desandando
Deu-lhe trágico fim a soberbia;
Mas nem tão deplorável, que mais tarde
Não cingisse-a a singlla poesia
De clarões e luares deslumbrantes:
Que as cousas longinquas, afastadas
No tempo e no lugar, sempre irradiam
Suave luz que encanta e bruxolea.
O mytho é um luar da antiguidade.
*
* *

Referem que Tupan na terra andando
Ouviu narrar o episodio triste
Da formosa Miaba. Inconsolavel
Chorou Tupan de pena. Um Deus chorando
Importa um turbilhão de ruinarias
Na mole universal. Os pólos tremem;
Estremecendo ruem as montanhas;
Emquanto os mares agitados fervem
Com furor acoutando a immensidade.
Pois foi o que se deu quando Tupan
Chorou com pena a sorte de Miaba.
*
* *
E revestindo a forma veneranda
De peregrino piaga, lacerado
Das pedras do caminho, foi á taba
Do orgulhoso cacique. Emfurecido,
Arrogante, quebrando a lei antiga,
A sancta lei de hospitalidade,
Nunca farto de guerra, avesso á paz,
O velho injuriou com requintada,
Com alvar e feroz descortesia.
Negou-lhe água da fonte crystallina;
Negou-lhe caça morta, havia pouco;
Negou-lhe amiga rêde de repouso.

*
* *
Então do velho a forma vae mudando
Pouco a pouco. Rebentam novas cores
E traços novos. Foge-lhe a figura
Com que appareceu: é uma ave bella,
Um lindo papagaio, que voeja
E vae pousar na arvore mais alta,
Que em roda existia. Então terrível
De lá pragueja maldições tremendas:
_ Olha o justo castigo que mereces,
Orgulhoso cacique, que imprudente
A Tupan recusastes os dons da vida;
_ Os raios de Tupan te firam na alma,
Immovel ficarás mudado em serra;
Para sempre serás Itabayana
E quando as gerações passarem junto
Ao logar onde foi a tua choça,
Tranzidas de tristeza lacerante,
Apontarão para a alterosa serra,
Exclamando: Alli esta Itabayana!...

VII

Pouco depois as nuvens se inflammaram
E fulminante raio atravessara
O cacique a tremer. No mesmo instante
Solta um grito de dor; mas já sem forças
Rodou três vezes, baqueiou o chão.
Contorce-se nas pedras moribundo;
De cada braço e perna ergueu-se um monte,
E a cordilheira surge de um só homem.

VIII

A ígnea língua lhe escavou no peito
Lethal cratera, que extravasa o sangue;
O qual, rumo do sul, seguindo em curva
Trajectoria, como um arco-irys,
Cahiu mui longe, de outra serra ao pé
E a terra ensopou
; de onde mais tarde
Mananciais e fontes se rasgaram.
*
* *
O sangue que esguichara da ferida
Chamou-se Cotinguiba. Inda hoje corre...

S. Christovam, 1891.
M. P. Oliveira Telles