segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Cantos da Chegança



De acordo com Beatriz Góis Dantas, a análise da música da Chegança apresenta problemas especiais ao pesquisador. A fonte ibérica é facilmente percebida nas letras e na estrutura melódico-rítmica de várias canções. Difícil, porém, é determinar quais destas são realmente derivadas de canções ibéricas. A autora apresenta vários tipos de canções que podem ser indicados: canções baseadas em ou influenciadas pelo cantochão; canções de caráter melódico-rítmico europeu; canções folclóricas de origem definitivamente brasileira; canções de fonte erudita ou canções compostas.1
Dentre estes, podemos afirmar que as melodias cantadas pelo grupo da Chegança Santa Cruz de Itabaiana-SE, encaixa-se no tipo de “canções folclóricas de origem definitivamente brasileiras” pois, percebemos em Zé de Binel uma facilidade em criar, recriar versos e adaptá-los para as encenações. Tal afirmativa é comprovada quando o mesmo nos relata que observou um erro na melodia apresentada pelo grupo Marujada da cidade de Laranjeiras-SE, no qual o comandante tirava o seguinte verso:
“Olho para o Leste e vejo uma nuvem regassar,
acuda meu comandante que a Nau vai pirigar”.
Para justificar o erro da expressão em destaque no verso, seu Zé nos explica que é impossível uma “nuvem regassar”, e que o correto é:
“Olho para o Leste e vejo uma nuvem se formar,
acuda meu comandante que a Nau vai pirigar”.2
Essa correção foi observada e feita em vários outros versos durante uma competição ocorrida no Espaço Cultural Gonzagão – Aracaju-SE, que contou com a participação de vários outros grupos folclóricos, na qual a Chegança Santa Cruz ganhou premiação máxima. Ao criar os cantos, ele encaixa novas rimas nas melodias com pequenas modificações.3
Assim, nascida de forma simples, humilde, sem nenhum aparato técnico a música folclórica pertence à comunidade que a faz sobreviver. E a sobrevivência se faz pela transmissão oral e práticas sem conceitos ou teorias. Ao se transmitir, ocorrem modificações, fonte de inovações e de contribuição do povo. Às vezes essa chamada contribuição coletiva parte de um indivíduo, geralmente um condutor autêntico do folclore, que é aceito pelo grupo e a partir daí se incorpora à contribuição musical já existente, perdendo no futuro o caráter de contribuição individual, passando para coletiva.4
A seguir apresentamos algumas canções da Chegança Santa Cruz de Itabaiana-SE, colhidas de Zé de Binel, destacando partes da encenação e o ritmo em que cada uma é cantada:


Título da Chegança – marcha batida
Quando bater a meia-noite
Vou dar ordem aos marinheiros
Para atracar o vapor.
Mas quando Santa Cruz chegou
Aqui no porto não atracou
Eu vou falar com o almirante 2x
Que é o nosso comandante 2x
Para atracar o vapor. 2x
Ai, sim senhor, meu comandante
Agora venho lhe avisar
Santa Cruz chegou no porto 2x
Mas a polícia marítima não deixou atracar. 2x

O embarque - Marcha ligeira
Vamos depressa, vamos embarcar 2x
Que o navio está no porto
não podemos demorar 2x
Meu comandante devo autorizar? 2x
A saída do navio pois queremos viajar 2x
Embarca, embarca, embarca logo 2x
Que a hora é essa 2x
Tocou o apito, 2x
Já tocou o apito.
Embarca depressa 2x
Meu comandante mandou embarcar
Puxa o ferro marinheiro 2x
Veja logo se arranca 2x
Com 10 metros de fundura 2x
Aí, pouca força não levanta 2x
Eu não quero saber disso 2x
Que eu também disse puxar 2x
Só desejo vê agora 2x
Esse navio viajar que governa o leme
Sou um piloto
Vê se não treme lá em alto mar
Passa essa noite, o dia amanhece
Tudo obedece ao meu navegar.

Marcha de despedida – embarque –
marcha ligeira
Tamos cientes que vamos para a guerra 2x
Deixando a nossa querida terra 2x
Meu comandante nós vamos para a guerra
Deixando a nossa querida terra.
Tamos cientes que vamos para a guerra 2x
Deixando a nossa querida terra.
Capitão-piloto nós vamos para a guerra. 2x
Deixando a nossa querida terra.

Piloto bêbado – marcha pulada

Capitão, piloto para onde estar olhando? 2x
Por causa de sua cachaça todos nós estamos chorando 2x
Homem prudente o que é que você quer? 2x
Deixe eu tomar minhas cachaças até quando Deus quiser 2x
Capitão-piloto quando deixa de beber?
Quando morrer.
Por causa de sua cachaça todos nós vamos sofrer.

Cozinheiro – marcha batida

Todo mundo tem sua hora
Na vida para descansar
O pobre do cozinheiro, coitado
Disso não poder gozar.
O piloto cheira a cravo
Capitão-tenente a canela
O pobre do cozinheiro, só cheira
A lodo e carvão de panela. 2x
No trabalho da cozinha
Eu tenho toda a competência
Sempre dou a bóia pronta, na hora
O patrão pode dar providência.
Todo mundo tem sua hora
Na vida para descansar
O pobre do cozinheiro, coitado
Disso não poder gozar.

A nau-perdida – marcha lenta

(reclamação do patrão com o piloto)
Falei-me nossa Senhora ou Virgem da Conceição 2x
O piloto embriagado
Perde essa aí embarcação
Patrão – Prometa vós virgem pura
Se esse navio salvar
De festejar vosso dia
Quando em terra chegar.

Oração do desespero – verso

Lá no porto se virar
Pensava vim uma marcha espantosa
Que causou admiração
Logo no primeiro banco
Esse navio bateu
Aí eu me ajoelhei
E fiz a minha oração
Valei-me Deus de Israel
Ele queria me ajudar
E logo-logo de repente
Vamos entrar na barca
Viajei setenta e cinco dias meu comandante
Somente a imaginar
Mas vim satisfeitamente
De ver o piloto
Sempre na guia de leva-mar.

Milagre da Virgem – marcha batida

Milagre da Virgem Maria 2x
Tá vendo a grande lida 2x
Era chuva, era nau, era vento 2x
Nas ondas do mar
Caminhos da vida.2x

Piloto bêbado – marcha batida

Oi, vamos todos com alegria
Lá pra barquinha de Noé
Agradecer a salvação
A Jesus e Maria José
Vamos todo com alegria
Pois lá na barquinha de Noé
Tem dois anjos querubins
Foi que me ensinou a cantar
Aí, viva ao senhor do Bomfim
Oi, lá barquinha de Noé
Vamos todos sem demora
Agradecer a Jesus e Nossa Senhora.

 

Na porta da Igreja - Marcha batida

Louvai Virgem do Rosário,
Senhora dos Navegantes
Acuda que a nós marujos
Dos perigos do levante
Ajuda que a nós marujos 2x
Sempre seja triunfante 2x
Louvemos, louvemos, louvemos
A quem viemos louvar
É a Virgem do Rosário 2x
Ela nos quer ajudar. 2x

Parte do piloto

Marinheiros?
Senhor!
Viva a mãe Deus do Rosário
Viva!
Um dia eu vindo viajando
Nesse camarote de proa
Essa nau vinha marchando
Do sul ao norte
Ouvir uma voz dizer
Acuda meu contra-mestre
Acordei muito vexado
pensei que fosse turbuzana
E fui saber o que era,
Era a voz de dois marinheiros
Vinham dormindo e acordaram
Atordoados, nisto quis saber o que era
Eu fui a proa, mandei ferrar todas as velas,
Barra e venteira, gulacho alto, gulacho baixo
O homem que não tem ciência meu comandante,
Não pode ser imperial
Não sobe, não desce e nem alargar

Autorização para o embarque

Marcha ligeira

Hora adeus pela Lisboa
Eu já vou me retirando
Santa Cruz estar no porto e atalaia está chamando 2x
         Quando vai chegando a noite
que essa nossa nau naufragou
Chora as mães pelos seus filhos, ai meu Deus que grande dor
Hora adeus pela Lisboa
Eu já vou me retirando
Santa Cruz está no porto e atalaia está chamando 2x
Ninguém viu do que eu já vi de ontem para anteontem
Duas beija-flores de ouro
lá no peito do comandante 2x
Hora adeus pela Lisboa
Eu já vou me retirando
Santa Cruz está no porto e atalaia está chamando 2x
Chora as mães pelos seus filhos,
A mulher por seu marido,
irmãos pelos irmãos e chora as moças por seus queridos.

Despedida - Marcha ligeira

Adeus meu povo todo
Todos passem muito bem
Que a mourama vai embora 2x
Porque é cristão também 2x
Todos passem vida boa
Que a mourama vai embora 2x
Pra capital de Lisboa 2x
Todos passem com alegria
Que a mourama vai embora 2x
Pra capital da Turquia. 2x
         Meu general eu bem vos dizia
Que preparasse a artilharia
Já preparei toda a artilharia
Meu comandante marche como um guia
Capitão-piloto eu marcho como um guia
Capitão-piloto eu bem vos dizia
Que preparaste toda artilharia
Já preparei toda artilharia
Meu general marche como um guia.5


Rito do batizado - Marcha ligeira
Eu te batizo mouro,
         pela lei da Santa Cruz
Depois de batizado mouro pertence a Jesus 2x
Quem era como nós era
Mouro de lá da Turquia
Já hoje somos cristãos acabou-se a fidalguia.



Notas do artigo
1 DANTAS, Beatriz Góis. Cadernos de Foclore nº 14: Chegança. Rio de Janeiro: s/ed., 1985. p. 07-08
2 Depoimento de José Serafim de Menezes, concedido a Wanderlei Menezes e Bruno Pereira Itabaiana, 03 de junho de 2010.
3 Idem.
4 ALENCAR, Aglaé D’Ávila Fontes de. Folclore e Educação Musical. In: Encontro Cultural de Laranjeiras 20 anos. Governo do Estado de Sergipe: Secretaria Especial da Cultura, 1994. p. 134.
5 Depoimento de José Serafim de Menezes, concedido a Wanderlei Menezes e Bruno Pereira Itabaiana, 03 de agosto de 2010.