De acordo com Beatriz Góis Dantas, a análise da música da Chegança
apresenta problemas especiais ao pesquisador. A fonte ibérica é
facilmente percebida nas letras e na estrutura melódico-rítmica de
várias canções. Difícil, porém, é determinar quais destas são
realmente derivadas de canções ibéricas. A autora apresenta vários
tipos de canções que podem ser indicados: canções baseadas em ou
influenciadas pelo cantochão; canções de caráter melódico-rítmico
europeu; canções folclóricas de origem definitivamente brasileira;
canções de fonte erudita ou canções compostas.1
Dentre estes, podemos afirmar que as melodias cantadas pelo grupo da
Chegança Santa Cruz de Itabaiana-SE, encaixa-se no tipo de “canções
folclóricas de origem definitivamente brasileiras” pois,
percebemos em Zé de Binel uma facilidade em criar, recriar versos e
adaptá-los para as encenações. Tal afirmativa é comprovada quando
o mesmo nos relata que observou um erro na melodia apresentada pelo
grupo Marujada da cidade de Laranjeiras-SE, no qual o comandante
tirava o seguinte verso:
“Olho para o Leste e vejo uma nuvem regassar,
acuda meu comandante que a Nau vai pirigar”.
Para justificar o erro da expressão em destaque no verso, seu Zé
nos explica que é impossível uma “nuvem regassar”, e que
o correto é:
“Olho para o Leste e vejo uma nuvem se formar,
acuda meu comandante que a Nau vai pirigar”.2
Essa correção foi observada e feita em vários outros versos
durante uma competição ocorrida no Espaço Cultural Gonzagão –
Aracaju-SE, que contou com a participação de vários outros grupos
folclóricos, na qual a Chegança Santa Cruz ganhou premiação
máxima. Ao criar os cantos, ele encaixa novas rimas nas melodias com
pequenas modificações.3
Assim, nascida de forma simples, humilde, sem nenhum aparato técnico
a música folclórica pertence à comunidade que a faz sobreviver. E
a sobrevivência se faz pela transmissão oral e práticas sem
conceitos ou teorias. Ao se transmitir, ocorrem modificações, fonte
de inovações e de contribuição do povo. Às vezes essa chamada
contribuição coletiva parte de um indivíduo, geralmente um
condutor autêntico do folclore, que é aceito pelo grupo e a partir
daí se incorpora à contribuição musical já existente, perdendo
no futuro o caráter de contribuição individual, passando para
coletiva.4
A seguir apresentamos algumas canções da Chegança Santa Cruz de
Itabaiana-SE, colhidas de Zé de Binel, destacando partes da
encenação e o ritmo em que cada uma é cantada:
Título
da Chegança – marcha batida
Quando
bater a meia-noite
Vou
dar ordem aos marinheiros
Para
atracar o vapor.
Mas
quando Santa Cruz chegou
Aqui
no porto não atracou
Eu vou
falar com o almirante 2x
Que é
o nosso comandante 2x
Para
atracar o vapor. 2x
Ai,
sim senhor, meu comandante
Agora
venho lhe avisar
Santa
Cruz chegou no porto 2x
Mas a
polícia marítima não deixou atracar. 2x
O
embarque - Marcha ligeira
Vamos
depressa, vamos embarcar 2x
Que o
navio está no porto
não
podemos demorar 2x
Meu
comandante devo autorizar? 2x
A saída
do navio pois queremos viajar 2x
Embarca,
embarca, embarca logo 2x
Que a
hora é essa 2x
Tocou o
apito, 2x
Já tocou
o apito.
Embarca
depressa 2x
Meu
comandante mandou embarcar
Puxa o
ferro marinheiro 2x
Veja logo
se arranca 2x
Com 10
metros de fundura 2x
Aí,
pouca força não levanta 2x
Eu não
quero saber disso 2x
Que eu
também disse puxar 2x
Só
desejo vê agora 2x
Esse
navio viajar que governa o leme
Sou um
piloto
Vê se
não treme lá em alto mar
Passa
essa noite, o dia amanhece
Tudo
obedece ao meu navegar.
Marcha
de despedida – embarque –
marcha ligeira
Tamos
cientes que vamos para a guerra 2x
Deixando
a nossa querida terra 2x
Meu
comandante nós vamos para a guerra
Deixando
a nossa querida terra.
Tamos
cientes que vamos para a guerra 2x
Deixando
a nossa querida terra.
Capitão-piloto
nós vamos para a guerra. 2x
Deixando
a nossa querida terra.
Piloto bêbado – marcha pulada
Capitão,
piloto para onde estar olhando? 2x
Por
causa de sua cachaça todos nós estamos chorando 2x
Homem
prudente o que é que você quer? 2x
Deixe
eu tomar minhas cachaças até quando Deus quiser 2x
Capitão-piloto
quando deixa de beber?
Quando
morrer.
Por
causa de sua cachaça todos nós vamos sofrer.
Cozinheiro – marcha batida
Todo
mundo tem sua hora
Na vida para
descansar
O
pobre do cozinheiro, coitado
Disso
não poder gozar.
O
piloto cheira a cravo
Capitão-tenente
a canela
O
pobre do cozinheiro, só cheira
A
lodo e carvão de panela. 2x
No
trabalho da cozinha
Eu
tenho toda a competência
Sempre
dou a bóia pronta, na hora
O
patrão pode dar providência.
Todo
mundo tem sua hora
Na vida para
descansar
O
pobre do cozinheiro, coitado
Disso
não poder gozar.
A nau-perdida – marcha lenta
(reclamação
do patrão com o piloto)
Falei-me
nossa Senhora ou Virgem da Conceição 2x
O
piloto embriagado
Perde
essa aí embarcação
Patrão
– Prometa vós virgem pura
Se
esse navio salvar
De
festejar vosso dia
Quando
em terra chegar.
Oração do desespero – verso
Lá no porto se
virar
Pensava
vim uma marcha espantosa
Que
causou admiração
Logo
no primeiro banco
Esse
navio bateu
Aí
eu me ajoelhei
E
fiz a minha oração
Valei-me
Deus de Israel
Ele
queria me ajudar
E
logo-logo de repente
Vamos
entrar na barca
Viajei
setenta e cinco dias meu comandante
Somente
a imaginar
Mas
vim satisfeitamente
De
ver o piloto
Sempre
na guia de leva-mar.
Milagre da Virgem – marcha batida
Milagre
da Virgem Maria 2x
Tá vendo a grande
lida 2x
Era
chuva, era nau, era vento 2x
Nas
ondas do mar
Caminhos
da vida.2x
Piloto bêbado – marcha batida
Oi,
vamos todos com alegria
Lá
pra barquinha de Noé
Agradecer
a salvação
A
Jesus e Maria José
Vamos
todo com alegria
Pois
lá na barquinha de Noé
Tem
dois anjos querubins
Foi
que me ensinou a cantar
Aí,
viva ao senhor do Bomfim
Oi,
lá barquinha de Noé
Vamos
todos sem demora
Agradecer
a Jesus e Nossa Senhora.
Na porta da Igreja - Marcha batida
Louvai
Virgem do Rosário,
Senhora
dos Navegantes
Acuda
que a nós marujos
Dos
perigos do levante
Ajuda
que a nós marujos 2x
Sempre
seja triunfante 2x
Louvemos,
louvemos, louvemos
A
quem viemos louvar
É a
Virgem do Rosário 2x
Ela
nos quer ajudar. 2x
Parte do piloto
Marinheiros?
Senhor!
Viva
a mãe Deus do Rosário
Viva!
Um
dia eu vindo viajando
Nesse
camarote de proa
Essa
nau vinha marchando
Do
sul ao norte
Ouvir
uma voz dizer
Acuda
meu contra-mestre
Acordei
muito vexado
pensei
que fosse turbuzana
E
fui saber o que era,
Era
a voz de dois marinheiros
Vinham
dormindo e acordaram
Atordoados,
nisto quis saber o que era
Eu
fui a proa, mandei ferrar todas as velas,
Barra
e venteira, gulacho alto, gulacho baixo
O
homem que não tem ciência meu comandante,
Não
pode ser imperial
Não
sobe, não desce e nem alargar
Autorização para o embarque
Marcha ligeira
Hora
adeus pela Lisboa
Eu
já vou me retirando
Santa
Cruz estar no porto e atalaia está chamando 2x
Quando
vai chegando a noite
que
essa nossa nau naufragou
Chora
as mães pelos seus filhos, ai meu Deus que grande dor
Hora
adeus pela Lisboa
Eu
já vou me retirando
Santa Cruz está no
porto e atalaia está chamando 2x
Ninguém viu do que
eu já vi de ontem para anteontem
Duas
beija-flores de ouro
lá
no peito do comandante 2x
Hora
adeus pela Lisboa
Eu já vou me
retirando
Santa
Cruz está no porto e atalaia está chamando 2x
Chora
as mães pelos seus filhos,
A
mulher por seu marido,
irmãos
pelos irmãos e chora as moças por seus queridos.
Despedida - Marcha ligeira
Adeus
meu povo todo
Todos
passem muito bem
Que
a mourama vai embora 2x
Porque
é cristão também 2x
Todos
passem vida boa
Que
a mourama vai embora 2x
Pra
capital de Lisboa 2x
Todos
passem com alegria
Que
a mourama vai embora 2x
Pra
capital da Turquia. 2x
Meu
general eu bem vos dizia
Que preparasse a artilharia
Já preparei toda a artilharia
Meu comandante marche como um guia
Capitão-piloto eu marcho como um guia
Capitão-piloto eu bem vos dizia
Que preparaste toda artilharia
Já preparei toda artilharia
Meu
general marche como um guia.5
Rito
do batizado - Marcha ligeira
Eu te batizo mouro,
pela
lei da Santa Cruz
Depois
de batizado mouro pertence a Jesus 2x
Quem
era como nós era
Mouro
de lá da Turquia
Já
hoje somos cristãos acabou-se a fidalguia.
Notas do artigo
1
DANTAS, Beatriz Góis. Cadernos de Foclore nº 14: Chegança.
Rio de Janeiro: s/ed., 1985. p. 07-08
2 Depoimento de José Serafim de Menezes, concedido a Wanderlei Menezes e Bruno Pereira Itabaiana, 03 de junho
de 2010.
3
Idem.
4
ALENCAR, Aglaé D’Ávila Fontes de. Folclore e Educação Musical.
In: Encontro Cultural de Laranjeiras 20 anos. Governo do
Estado de Sergipe: Secretaria Especial da Cultura, 1994. p. 134.
5 Depoimento de José Serafim de Menezes, concedido a Wanderlei Menezes e Bruno Pereira Itabaiana, 03 de agosto
de 2010.