Tributo ao professor Damásio Leite e ao Gabinete
Literário de Itabaiana (1875-1880) [1]
Wanderlei
Menezes[2]
Em 1860 era fundado em Aracaju o primeiro gabinete
literário da província de Sergipe. Dezessete anos depois, em Maruim, surgia o
mais propalado, influente e duradouro gabinete de leitura de Sergipe. No
ínterim desses dois acontecimentos históricos para a cultura de Sergipe, na
vila de Itabaiana surgia também um gabinete literário. Este texto trata da
trajetória de vida do fundador desta iniciativa cultural que apesar de efêmera
representou um importante momento para a história da educação e cultura de
Itabaiana no século XIX.
Nos idos da década de 50 do século XIX, nascia Manoel
Damásio Pereira Leite, na então vila de Santo Antônio e Almas de Itabaiana,
filho legítimo do casal Damásio José Pereira e Josefa Francisca de Araújo Leite.
Recebeu o sacramento do batismo do vigário Domingos de Melo Resende na Igreja
Matriz de Santo Antônio e Almas de Itabaiana. A família Pereira Leite era tradicionalmente
constituída de educadores e sacerdotes. Tinha o pequerrucho por irmãos os professores
Olímpio Pereira de Araújo (1854-1875), Manoel Pereira de Araújo Leite, Cassiano
Pereira de Araújo, Guilhermina Leite de Araújo, Laurinda Leite de Araújo –
todos dotados de muita inteligência e preparo.
Jovem irrequieto, muito moço deixou as saias da mãe
e entrou para o seminário. Não chegou a se ordenar padre por motivos
desconhecidos. No início da década de 70 voltou à terra natal decidido a ser
professor. Sua missão de vida era levar aos compatrícios as luzes do saber.
Damásio falava fluentemente o francês. Apesar de muito religioso, a História
era sua grande paixão.
Em 1874, planeja fundar
na sede da vila um gabinete literário, ideia ousada e um tanto quanto
progressista para uma terra tão descuidada com a cultura. Só para se ter noção
do descaso do poder público com a educação, nesse mesmo ano a Assembleia
Provincial expediu a Resolução 962 que determinava a extinção da cadeira de
ensino elementar de Itabaiana que fosse menos freqüentada. Assim, com modesta
festividade e sem a presença das elites políticas e econômicas, em 28 de
fevereiro de 1875, foi inaugurado o Gabinete Literário de Itabaiana, um dos primeiros
da Província de Sergipe. A sede da iluminista instituição situava-se na outrora
Rua das Flores, atual Barão do Rio Branco.
A empolgação e
idealismo do jovem Damásio conseguiu congregar mais 24 pessoas no seu projeto
de vida. Eram os membros fundadores do gabinete: Professor Manoel Damásio
Pereira Leite (185? -1881), Alferes Joaquim José de Oliveira Mesquita
(1846-1879), Tenente Manuel Álvares Teixeira (?-1906), Antonio de Oliveira
Bezerra (1849-1922), Tenente Antonio dos Santos Leite (1835-1907), Capitão
Manuel Joaquim de Carvalho Lima, Tenente José Teles de Góis, Professor Olímpio
Pereira de Araújo (1854-1875), Alferes Antonio Joaquim de Oliveira Noronha
(1840-1901), Guilhermino Amâncio Bezerra (1847-1909), José Amâncio Bezerra,
José Martins Fontes (1829-1895), Tenente Marcelino de Melo Cardoso, Esperidião
Zamiro de Sousa Lopes, Tenente José da Costa Fontes (1848-1880), Capitão
Francisco Julião de Lemos, Dr. Francisco Dias César (1840-1875), Tenente-coronel
Antonio Carneiro de Menezes (1813-18?), Samuel Pereira de Almeida (1853-1892),
Antonio Cornélio da Fonseca (1845-1922), Tenente José Caetano de Távora,
Alferes José Verano de Carvalho Lima (1841-1915), Francisco Farias de Barreto Freire,
Antonio Pinheiro de Melo e Salustiano de Carvalho Lima.
Os gabinetes literários
eram instituições que visavam fomentar o gosto pela leitura. O atraso cultural
de Itabaiana era tão grande que o Gabinete era mais uma escola. Primeiro,
pensavam os fundadores do gabinete, devia-se instruir a mocidade para depois se
pensar em fomentar o gosto pela cultura. Segundo o pesquisador Sebrão, sobrinho,
o gabinete de Itabaiana tinha por objetivo facilitar aos seus membros a
instrução pela leitura dos bons livros e jornais, especialmente os nacionais.
Porém, a principal função era oferecer o ensino básico à juventude
itabaianense.
Nessa época Itabaiana
vivia o apogeu da cultura algodoeira. A “febre do algodão” contaminava toda a
vila. Os itabaianenses ficaram ricos do dia para a noite, porém continuava a
vila a ser “um cantão de bárbaros e ignorantes”. A instrução pública era
privilégio de pouquíssimos e, principalmente, dos bem-nascidos. O gabinete era
a mais democrática instituição de ensino surgida em Itabaiana. Jovens pobres
tinham o mesmo direito de receber os rudimentos do saber que os mais abastados.
Os melhores e mais talentosos professores de Itabaiana estavam no Gabinete,
motivo que enciumou muita gente, principalmente a retrógrada classe dirigente e
os professores particulares. Para indignação dos opositores e “agourentos”, grande
foi a procura pela iniciante instituição: mais de 70 alunos matriculados nas
sete aulas que o gabinete oferecia, número espantoso para a época.
No primeiro ano de
atividade havia quatro professores, a saber: Olimpio Pereira de Araújo,
Guilhermino Bezerra, Damásio Leite e Antonio Joaquim de Oliveira Noronha. As disciplinas
ofertadas eram: Primeiras letras (professor Olímpio); Matemática elementar,
Língua, Literatura nacional e Catecismo (Guilhermino Bezerra); História do
Brasil, Geografia Moderna e Língua francesa (Damásio Leite) e Música (maestro
Antonio Joaquim de Oliveira Noronha).
Os dois primeiros anos
foram de sucesso e grande entusiasmo. Só uma grande baixa: a morte do professor
Olimpio Pereira de Araujo, em junho de 1875. Mas o gabinete seguia seu caminho
satisfatoriamente, mesmo sem a ajuda do poder público.
José Martins Fontes, juiz
de direito e posteriormente presidente de província, foi eleito presidente da
instituição. Acreditavam os associados que sua influência pessoal poderia
ajudar a instituição. Contudo, estavam errados os sócios. O presidente mostrou-se
omisso com o gabinete. Em 1877 tornou-se sócio-fundador do Gabinete Literário
de Maruim, o único do gênero ainda existente em Sergipe, e esqueceu-se da
agremiação que lhe outorgou o cargo máximo. Quando assumiu as rédeas da
província de Sergipe (1877-1878) não fez nada pelo Gabinete de Itabaiana. Resolveu
o ingrato presidente prejudicar a benemérita instituição cultural. Tirou, por
ato oficial de 02 de março de 1877, Damásio Leite de Itabaiana. O jovem
professor havia sido nomeado para a escola de Nossa Senhora Dores. Teve que
deixar o gabinete e seguir seu destino de coração partido. Mas foi... Sempre
que podia Damásio vinha a sua terra natal e o primeiro local que visitava era o
gabinete.
Os infortúnios só
estavam começando para Damásio. Passado o mandato do ingrato José Martins
Fontes, era a vez do bacharel Teófilo Fernandes dos Santos ascender ao posto de
presidente de província e dar sua contribuição pessoal para o arruinamento do
Gabinete. Por razões políticas perseguiu ferrenha e impiedosamente ao nosso
idealista. Por ato de 19 de março de 1879 o deixou mais longe do Gabinete ao
transferi-lo para a vila de Itabaianinha, no extremo sul da província, cinicamente
com o argumento de “conveniência do serviço público”. Suspeito que tal ato discricionário
teve o “dedo” dos políticos do partido conservador de Itabaiana. Damásio se
uniu a jovens dissidentes do partido conservador, os irmãos Bezerra, e era um
liberal moderado. No novo lugar de trabalho o jovem professor sofreu na pele os
ranços da politicagem mesquinha. Os jornais da época noticiaram o drama do desafortunado
Damásio. É de comover até os mais insensíveis os ultrajes sofridos.
Ao voltar a Itabaiana,
no crepúsculo do ano de 1879, durante as férias, adoeceu ao ver o gabinete
quase fechado. Os sócios mais ativos saíram de Itabaiana para ocupar cargos
públicos (a exemplo de Antonio Cornélio da Fonseca, Guilhermino Bezerra e
outros) e os mais displicentes fizeram vistas grossas ao arruinamento da
instituição cultural. Por tudo isso, O Gabinete Literário de Itabaiana estava
com seus dias contados.
A elite política
retrógrada queria Damásio mais longe ainda de Itabaiana. A Resolução Provincial
número 1156, de 30 de abril de 1880, do deputado provincial Germiniano
Rodrigues Dantas, estipulava uma licença para encerrar seus “estudos em
qualquer seminário do Império” durante três anos. Damásio não gozaria da
“bondade” da Assembleia Provincial.
A 10 de janeiro de 1881 dava seu último suspiro o professor
Damásio Leite, desgostoso, pobre e doente de beribéri. Morreu em Itabaiana, buscando
a cura da sua enfermidade com a mística da Serra de Itabaiana e a alegria de
ver o letreiro do Gabinete que anos atrás ele havia fundado. Viu o desditoso
professor, dias antes de falecer as portas do seu Gabinete Literário fechadas. A sociedade itabaianense, omissa e descuidada com a
cultura, calou-se frente à morte do Gabinete. A morte de Damásio representou a
morte do Gabinete.
O historiador Carvalho Lima Júnior (1859-1929) saiu
de Itabaiana no apogeu do gabinete e ao regressar anos depois a sua cidade
natal viu morrer a mais bela iniciativa cultural da História de Itabaiana. Tal
desgosto, entre outros motivos, o fez nunca mais pôr os pés no torrão serrano.
O enterro do fundador do Gabinete ocorreu no cemitério
das almas. O mesmo Domingos de Melo Resende que o batizou, celebrou as
exéquias. Este sacerdote era delegado literário, vigário da freguesia e influente
político, ou seja, um dos homens que poderia ter dado seu contributo ao
Gabinete e, no entanto, foi omisso e conivente com os críticos da instituição.
A família Bezerra, entusiastas e sócio-fundadores do
Gabinete, tornou-se forte politicamente nos últimos anos da década de 80, mas
isso não foi o suficiente para ser reativado o sonho de Damásio. Em 28 de
agosto de 1888, Itabaiana foi elevada à condição de vila. Nessa época ainda
restava a fachada do Gabinete com os dizeres: Gabinete Litterario de Itabaiana.
O século XX veio impiedoso e matou um a um os sócios-fundadores da instituição
que em 1875 levou cultura ao povo de Itabaiana. Até a década de 40 do século
passado existia a última marca dos tempos de glória do Gabinete: o apagado
letreiro. Acredito que a geração iletrada do início do século XX se perguntava
o que havia sido aquela instituição.
Em 1936 é criado o primeiro
grupo escolar de Itabaiana. A honra de denominar a instituição de ensino é de
Guilhermino Bezerra, um dos sócios-professores do Gabinete. Passados treze
anos, a Lei número 190, de 30/06/1959, cria a Biblioteca Pública Municipal de
Itabaiana. Muito merecia Damásio emprestar o nome para a biblioteca, mas o
escolhido foi o farmacêutico e rábula Dr. Florival de Oliveira (1889-1965).
As escolas municipais
de Itabaiana, há décadas atrás, receberam nomes curiosos e até hilários, por
exemplo, Escola Panamá (povoado Malhada Velha), Egito (povoado Igreja Velha),
Costa do Marfim (povoado Zanguê), Grécia (povoado Estreito), Jamaica (povoado
Flexas) e até Líbia (povoado Congo)!!! Mas a Damásio nenhuma singela homenagem...
Faz-se necessário mencionar que na década de 90 do século passado a escola do
povoado Queimadas, atualmente bairro, tinha o nome de Olímpio Pereira de Araújo,
irmão de Damásio e sócio-professor do Gabinete.
Damásio Leite é um nome
desconhecido na História de Itabaiana. Apenas o velho pesquisador Sebrão,
sobrinho (1898-1973) recolheu algumas breves informações sobre sua vida numa
nota de rodapé do livro Tobias Barreto, o
Desconhecido (1941). Bem que poderia o velho Sebrão, por tudo que vimos,
ter dito que a atuação de Damásio Leite foi mais importante para Itabaiana que
a breve passagem do tão homenageado Tobias Barreto.
O professor Damásio é
um personagem histórico injustiçado tanto em vida quanto em morte. Logo ele, um
moço talentoso de um coração magnânimo, bondoso desde muito jovem, sempre pronto
para ser útil a seus amigos, um exemplo vivo de desprendimento e solidariedade
humana. É triste pensar que um homem dessa qualidade vive num esquecimento
sepulcral e até hoje não recebeu o devido valor dos seus conterrâneos. Mas
ainda podemos corrigir essa injustiça histórica da cidade serrana de Sergipe.
Dos
gabinetes de leitura do século XIX e início do século XX só existe em Sergipe o
de Maruim, em precário estado. Em discurso pronunciado nas comemorações do cinquentenário
do Gabinete de Leitura de Maruim (21 de agosto de 1927), Joel Aguiar,
intelectual maruinense, profetizou com extrema precisão o futuro da outrora
desenvolvida urbe da Cotinguiba e o valor do Gabinete:
se a fatalidade lançar algum dia
sobre nós as malhas do regresso, obrigando-nos a palmilhar e a perlustrar a
tenebrosa estrada da decadência, esta cidade não morrerá de todo, porque será
sempre lembrada como terra propagadora das lettras (...) se o destino nos levar
à triste situação de um lugarejo, onde não se houve o ruído do progresso e a
harmonia da justiça, forçando-nos a olharmos entristecidos para as quietas
águas do Ganhamoroba, esta cidade não morrerá de todo, porque um pharol
brilhará sempre à vista de quem aqui pizar, encadeando de alegria a retina do
viajor.
Imaginem, caros
leitores, se a profecia do orador de Maruim um dia servir para Itabaiana.
Quando as luzes do progresso cessarem, o que será de Itabaiana? Certamente pior
que Maruim.
[1] O presente artigo foi produzido
entre 18 de agosto e 10 de outubro de 2009 e faz parte de uma coletânea inédita
de textos escritos de junho de 2005 a setembro de 2009 sobre a História de
Itabaiana. A pretensão é compor um livro intitulado “A outra história de
Itabaiana”.
[2] Graduado e Bacharelando em
História pela UFS. Sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Diretor do Departamento de Pesquisa e Memória da Secretaria Municipal de
Cultura de Itabaiana. Contato: wanderlei.menezes@yahoo.com.br.