Wanderlei Menezes[i]
Os partidos Liberal e Conservador monopolizaram
as disputas políticas no Brasil monárquico. Nascidos na época regencial, as
duas facções travaram memoráveis e violentas disputas pelo poder. Em
decorrência disso, vulgarizou-se o rótulo “eleições do cacete” para denominar
os pleitos eleitorais dessa época. O uso da força nas eleições era mais
acentuado em localidades interioranas, onde os chefes políticos usavam métodos
“sujos” para garantirem o controle sobre o eleitorado. Coube a Itabaiana o
triste título de local das mais memoráveis eleições do cacete da História de
Sergipe.
As disputas eleitorais se processavam
de forma bastante tumultuada. Situação e oposição procuravam manter seus cargos
através de métodos que iam da troca de favores à intimidação de eleitores através
de ameaças e agressões. As fraudes eram constantes. A situação quase sempre
vencia as disputas. Todavia, quando a alijada oposição tomava o poder usava dos
mesmos métodos dos adversários para se perpetuarem no comando da política
local. As eleições eram muito mais que um pleito; significavam o futuro do
chefe político e de seus agregados. Nenhuma das duas agremiações políticas
queria ver o adversário ocupar os espaços públicos.
O sistema eleitoral contribuía para
essa situação: só tinha direito ao voto os cidadãos com renda estipulada por
lei, a votação era aberta, geralmente na Igreja Matriz, e não havia o que hoje
chamamos de Justiça Eleitoral. Sendo assim, o eleitor sofria a pressão da ação
dos “donos do poder” na hora de depositar na urna seu voto. O resultado era
sempre duvidoso, pois, antes da eleição, as autoridades intervinham na qualificação
de votantes e, depois do final dos trabalhos da mesa paroquial, poderia haver o
criminoso esquema das duplicatas de atas eleitorais para beneficiar
determinados candidatos.
Sergipe
sofreu durante o Império memoráveis situações de conflitos armados entre
liberais e conservadores pelo controle do eleitorado. O maior exemplo desses
embates foi a dita Revolução de Santo Amaro (1836). Todavia, toda eleição na
vila de Itabaiana era marcada pela truculência e por cenas lamentáveis. O
exemplo maior dos embates sangrentos de liberais e conservadores ocorreu em
1848 e causou grande repercussão em toda a província de Sergipe.
Corria
o ano de 1848 sem grandes novidades na vila de Itabaiana. Em janeiro, era
enforcado em praça pública, após sofrer condenação à pena capital, o mascate
João Gomes. Dizem que o pobre homem pagou por um crime que não cometera [iii].
Nesse ano, os liberais representavam a situação na vila. Após amargarem longos
anos de ostracismos e perseguições – principalmente por parte do Tenente Manoel
da Cunha Mesquita, nome de triste memória pelos crimes de abuso de poder e
corrupção passiva e ativa –, nos últimos anos da década de quarenta os liberais
tomaram o poder e cometerem toda espécie de desmandos. A ala situacionista era
liderada por José Antonio de Carvalho Lima, presidente da Câmara dos Vereadores
de Itabaiana, e pelo Tenente-Coronel da Guarda Nacional Antonio Carneiro de
Menezes. A oposição aos liberais era formada por Manoel da Cunha Mesquita, Tertuliano
Manoel de Mesquita e Manoel Raimundo Teles de Menezes.[iv]
No já referido ano, os conservadores
começaram a retomar espaço graças à ascensão de seu partido em nível nacional. Um
dos Juízes Municipais, José Ramos de Souza, era partidário dos conservadores. No
entanto, o delegado e o subdelegado eram liberais. Essa clara divisão dos
“homens da lei” era o prelúdio de conflitos. As animosidades e excessos
começaram a surgir. Os liberais Eugênio José Teles e José Francisco de Menezes foram
demitidos de seus cargos pela ação de políticos conservadores. Para piorar a
situação, as eleições locais para a escolha de vereadores e juízes de paz estavam
marcadas para 10 de outubro.[v]
Poucos
dias antes do pleito, o Juiz Municipal suplente José da Souza Ramos ordenou a
prisão de Antonio Carneiro de Menezes e de outros liberais sob a alegação de
não poderem fazer parte da mesa paroquial e de suposto plano de distribuição de
armas e munições a seus protegidos a fim de garantirem “a ferro e fogo” a
vitória no pleito. Este último boato agitou os ânimos dos conservadores. Ao
alvorecer do tão esperado dia 10, uma terça-feira, a Matriz estava cercada por
mais de trinta homens armados de cacetes, bacamartes, foices e outras armas
mortíferas.[vi]
O Pároco da Igreja, Félix Barreto de Vasconcelos, se assustou ao sentir o clima
de guerra. As forças policiais, comandadas pelo delegado José Teixeira Lobo e
auxiliadas pelo subdelegado José de Souza Contreiras, ambos liberais, foram
chamadas para desalojar o grupo de baderneiros a mando do Juiz Municipal. O
contingente policial, porém, regressa em busca de mais reforços por não terem
número suficiente de soldados para executar a ação de dispersão dos
perturbadores da ordem. Com a chegada de um maior contingente policial para se
garantir o andamento das eleições e o sossego público, começa o bate-boca e
ouvem-se gritos por parte do grupo desobediente de “viva o partido legal
(conservador) e morte aos camundongos (liberais)”. Era o sinal, o estopim do
conflito. A porta da Matriz se transformou, em poucos segundos, num verdadeiro campo
de batalha e as autoridades e populares se dividem conforme suas preferências
políticas. O interior da Matriz, o matagal da praça e cantos de parede da
Paróquia de Santo Antonio e Almas serviram de trincheiras.[vii]
Descargas de tiros estrondosas são
ouvidas – uma verdadeira chuva de chumbo –, gritos de desespero e dor, fumaças
de pólvora e muito barulho marcam os primeiros minutos do trágico embate. Mais
de cinto e cinqüenta tiros disparados nas duas frontes. Pouco mais de dez
minutos, o grupo de desordeiros, percebendo a desvantagem numérica, deu toque
de retirada e o conflito foi estancado. Silenciado os trabucos, era hora de
colher os negros frutos do intenso tiroteio: 3 mortos e 19 feridos. Um enorme
estrago para um confronto tão rápido.
De acordo com o historiador itabaianense
Carvalho Lima Júnior[viii],
quando a Matriz de Itabaiana recebeu reparos (1871), ainda se contavam os
vestígios do grande tiroteio de mais de duas décadas atrás dentro e fora do
recinto sagrado dedicado a Santo Antônio que durante o tiroteio deve ter
corrido para debaixo do altar. Ficaram também as marcas de balas nas paredes de
residências próximas à Matriz. No dia seguinte, os mortos eram enterrados com
grande pesar. No óbito bem que poderia constar como causa mortis a intolerância política e autoritarismo crônico e
doentio dos chefes políticos.
O Dr. Cláudio Manuel de Castro,
chefe de polícia, resumiu bem as causas do conflito: “não há crimes que não
cometem, nem meios por mais baixos que sejam, de que não lancem mão quando se
empenham em pôr os intentos em execução” [ix].
Já o padre Félix, que também era deputado, pronunciou um belo discurso na
Assembléia em março do ano seguinte ao ocorrido onde mostrou o aspecto
calamitoso da sua freguesia: “pois sendo morador em Itabaiana, e não vendo nela
segurança alguma publica, e individual, somente vejo muita immoralidade, muita
desordem, e nenhuma segurança. Em Itabaiana, Senhores (deputados), os roubos de
toda espécie são contínuos, e quase cotidianos, os assassinatos sobem a hum
numero espantoso (...) as estradas por ali andam infestadas de facinorosos”.[x]
A vila ainda registraria outras batalhas
eleitorais em 1856, 1863, 1868 e 1872, porém nenhuma dessas com a intensidade daquela
lastimável manhã de terça. Para piorar ainda mais a situação, no mesmo ano do
grande tiroteio, a vila recebeu a indesejável visita da febre amarela. A doença
ceifou muitas vidas[xi].
Não faltaram aqueles (as) que explicavam as três desgraças (enforcamento de
João Gomes, o tiroteio e a peste) como sendo castigo divino. Os episódios de
1848 mostram que os males das rivalidades e da polaridade política têm longa
trajetória no torrão serrano.
Por fim, cabe registrar o equívoco
cometido pela historiografia sergipana ao fazer alusão aos acontecimentos
relatados acima. Erram os historiadores locais (Comendador Travassos, Lima
Júnior, Sebrão sobrinho, Vladimir Souza Carvalho, Maria Nele Santos, Maria
Thétis Nunes e outros) ao considerarem que o “tiroteio de 1849” ou “morticínio
de 1849” ocorreu durante as eleições de 1849. Na realidade, a briga política
ocorreu, conforme mencionamos antes, durante a realização das eleições para
vereadores e juízes de paz no ano de 1848, como atestam todos os documentos
manuscritos de época e o jornal Correio Sergipense. A possível explicação para
a perpetuação do equívoco histórico pode residir na reprodução, sem a devida
crítica histórica, por parte da moderna historiografia sergipana, dos clássicos
textos de Travassos[xii]
e Lima Júnior[xiii]
e o fato de ter ocorrido no ano de 1849 as eleições para deputados.
NOTAS
[i] Graduado em História pela
Universidade Federal de Sergipe. Contato: wanderleidamarcela@hotmail.com;
[iii] MENEZES, Wanderlei de Oliveira. Festa, farinha e forca: a pena de morte
na província de Sergipe (1839-1889). São Cristóvão, 2008. Monografia
(Licenciatura em História) – Departamento de História, Universidade Federal de
Sergipe. p.73-76;
[iv] Em relação aos desmandos e
crimes dos conservadores de Itabaiana vide APES. Coleções Particulares, Fundo
Sebrão, sobrinho, Volumes 35 (docs. 01,06 e 10); 37 (doc. 7); 40 (docs. 09 e
11); 44 (docs.01,03,09,11); 46 (docs. 09,10);
[vi] PESTANA, Domingos Mondim. Sucessos do dia 10 de outubro de 1848 em a Villa de Itabaiana.
CORREIO SERGIPENSE. São Cristóvão, ano XI, n. 84, 08 de novembro de 1848,
p.3-4;
[vii] CORREIO SERGIPENSE. Sessão ordinária de 08 de março de 1849. São Cristóvão, ano XII, n.
18, 17 de março de 1849 (suplemento). p.2-3;
[viii] LIMA JÚNIOR, F. A. de Carvalho. Monografia histórica do município de Itabaiana. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, v.2, n.4, 1914. p.144-145;
[ix] NUNES, Maria Thétis. Sergipe Provincial II (1840-1889). Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p.126;
[x] CORREIO SERGIPENSE. Sessão ordinária de 08 de março de 1849. São Cristóvão, ano XII, n.
18, 17 de março de 1849 (suplemento). p.3;
[xi] CARVALHO,
Vladimir Souza. Santas almas de
Itabaiana grande. Itabaiana: Edições o Serrano, 1973. p.49-54;
[xii] TRAVASSOS, Antonio José da Silva.
Apontamentos históricos e topográficos da Província de Sergipe. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
de Sergipe, Aracaju, v. 3, n.6, 1916. p.110;